Terça-feira, 15 de Março de 2005
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: Sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir -é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perfeita. Apagar tudo do quadro de um dia para outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua de emoção - isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na fase com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão. Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edíficios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações - sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que (o que serei?) amanha, e amo/vos de amurada como um navio que passa por outro navio e ha saudades desconhecidas na passagem.